FACA DE DOIS GUMES


A arena digital torna a sociedade mais conectada e globalizada, mas por outro lado amplia a produção de desinformação e a violência contra profissionais de imprensa


Reportagem: Victor Alexsander

No últimos anos, diversas organizações têm denunciado o aumento da violência contra profissionais e veículos de imprensa de todo mundo. Se em 2015, o atentado terrorista ao jornal satírico francês Charlie Hebdo, em Paris, resultou em doze pessoas mortas, cinco feridas gravemente e um número incontável de nações atônitas; agora, cinco anos depois, governos como os do republicano Donald Trump, nos Estados Unidos e também de Jair Bolsonaro (sem partido), no Brasil naturalizam a ataques verbais e físicos a jornalistas.


É o que denuncia a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF), ao divulgar o Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa 2019, um relatório que analisa a atuação de jornalistas em 180 países diferentes e que também aponta o aumento das agressões contra órgãos de imprensa. “O ódio aos jornalistas se transformou em violência, o que levou consequentemente a um aumento do medo na profissão”, relata, em nota, a instituição.

Se o nível da hostilidade aumentou, a classificação do Brasil, entretanto, caiu três posições, em relação ao último levantamento. Agora, o país ocupa a 105ª posição de lugares mais seguros para se trabalhar como jornalista. A situação em terras brasileiras tem se agravado desde a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República, segundo relatório publicado este ano pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ). Na avaliação da instituição, este fato afetou significativamente a liberdade de imprensa no Brasil. Em 2019, o número de casos de ataques a veículos de comunicação e a jornalistas chegou a 208, um aumento de 54,07% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 135 ocorrências.

“Se o debate político desliza, de forma discreta ou evidente, para uma atmosfera de guerra civil, onde os jornalistas se tornam bodes expiatórios, os modelos democráticos passam a estar em grande perigo”, explica Christophe Deloire, secretário geral da RSF, no relatório. “Deter esse mecanismo do medo é absolutamente urgente para mulheres e homens de boa vontade que prezam as liberdades adquiridas ao longo da história". complementa.

A jornalista da TV Integração Eliane Moreira completa, em 2020, dez anos de profissão e afirma nunca ter sofrido nenhum ataque físico ou ameaça, mas reconhece, no entanto, um aumento da violência aos jornalistas, principalmente, a verbal: “eu nunca vivi uma situação dessa, com relação à falta de respeito com o jornalista, eu acho que, de uns dois anos para cá, a situação piorou muito”, avalia.

Elaine Moreira - Foto: Arquivo Pessoal
Em Maio deste ano, uma repórter e um cinegrafista da TV Integração foram atacados na cidade de Barbacena (MG), como denunciou o G1. O caso foi amplamente divulgado em diferentes veículos e gerou manifestações de repúdio em diversos órgãos de representação da imprensa.


Eliane corrobora com a análise política dos relatórios divulgados tanto pela RSF, quanto pela FENAJ, que apontam a polarização política e a postura de líderes, como alguns dos fatores responsáveis pelo crescimento de ataques aos profissionais de imprensa: “eu acho que a falta de respeito ela sempre existiu, mas ela só se destacou agora porque as pessoas se sentem no direito de agir por conta de um apoio, que pode ser de forma indireta, do Governo Federal, com relação à imprensa”.

Um viés científico sobre a violência contra profissionais de imprensa


Carla Ramalho
Foto: Arquivo Pessoal
A mestra em Mídias e Processos Sociais Carla Ramalho também avalia a postura do presidente Jair Bolsonaro como uma espécie de catalisador da violência contra órgãos de imprensa no Brasil, uma vez que, por diversas vezes, chefe do Executivo não se sente na obrigação de responder os questionamentos dos jornalistas: “pelo contrário, ele agride, ele ameaça e ele acaba violentando, de uma forma bastante brutal, a própria ideia de democracia”, reforça.

Mas, além desta constatação, de forma mais profunda, Carla, que atualmente tem suas pesquisas voltadas aos Discursos Midiáticos e Práticas Sociais, avalia que outros elementos deixam a situação atual, de violência contra os jornalistas, ainda mais complexa do que parece, por exemplo: o próprio lugar que o jornalismo ocupa na sociedade. Na visão da pesquisadora as fronteiras do jornalismo, por muito tempo, foram consideradas como delimitadoras de um espaço da verdade, tendo o jornalista o papel de guardião da sociedade. 

“Esse lugar foi sendo questionado e veio sendo enfraquecido, juntamente com o movimento de enfraquecimento das instituições, em geral”, pondera a mestra, lembrando ainda que, se por um lado, a arena social leva a outras configurações de jornalismos - no plural -, traz consigo um efeito colateral: a produção de desinformação. “A partir do questionamento deste lugar e do que este lugar produz, questiona-se também essa figura do jornalista”, observa.

Ainda nesta linha de raciocínio, a pesquisadora traz à tona uma comparação entre o comportamento do profissional que produz jornalismo, atualmente, e o do passado: “com a internet, hoje, a gente tem o que alguns autores apontam como regiões de palco e as regiões de bastidores”, aponta Carla, lembrando que por muito tempo profissional da mídia não teve um contato próximo, ou, em muitas vezes, não revelava sua identidade para o público, características que o diferem do produtor de conteúdo atual:“hoje, os jornalistas também revelam seus bastidores, seus posicionamentos, como eles vêem o mundo e a gente observa, sobretudo neste ambiente digital, que as pessoas criam novas formas de se relacionar e também outras relações com esses profissionais”, analisa a mestra, lembrando que estas conexões muitas vezes são prerrogativas para os ataques ou agressões.

A identidade e o corpo e a identidade do profissional que é atacado e quais espaços ele ocupa também foram reforçados pela pesquisadora: “determinadas opressões vão ficando mais visíveis, como por exemplo, quando esse jornalista que fala é uma mulher, ou quando esse jornalista que fala é uma mulher negra”, exemplifica.

Se a arena digital produz um ambiente propício à violência contra a imprensa e seus trabalhadores, tudo indica que é nas urnas que esta visão pode ser reconstruída.

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